"Sempre enxerguei muito bem". Esta frase fez parte do meu repertório por muito tempo. Fazia muito sentido, aliás. Não faz mais. Tudo começou por volta do último mês de dezembro quando, durante as compras de natal num shopping, percebi que só conseguia identificar as feições dos rostos das pessoas quando elas se aproximavam bastante. Por alguns instantes imaginei que se algumas delas fossem conhecidas provavelmente pensariam 'nossa, como ele é mal educado', pois certamente não as cumprimentei quando e se elas passaram por mim. A partir de então comecei a reparar que do fundo da sala de aula já não identificava algumas coisas escritas por mim mesmo no quadro.
Oftalmologista urgente!
Consulta, alguns exames, faltou um, semanas de espera, pintou um encaixe, teste ortóptico, dificuldade de convergência, dilatação de pupilas, exame de fundo de olho. Miopia.
Até então tudo estava bem. Eu não enxergava como antes, mas o problema fora diagnosticado e eu poderia, de posse de minha prescrição, encomendar meus óculos. Ótimo. Fui a algumas óticas e experimentei duas dúzias de armações. Dúvida: esta ou aquela? Esta! Cadê a prescrição, esqueci, volto outro dia. Pronto, tudo perfeito, óculos prontos.
Quando tive o primeiro contato com o mundo exterior já era noite. Mas tudo se iluminou.
Está certo que durante os exames no oftalmologista eu já tinha constatado a dificuldade de visão. Mas no oftalmologista a gente constata isso a partir da leitura de letras imóveis, chatas, monocromáticas, magrelas. E tudo isso em uma sala escura. E então foi um grande choque sair à rua usando os óculos. O mundo real é muito mais interessante do que uma salinha escura. As placas distantes ganharam palavras que de longe, até outro dia, pareciam não existir. Os rostos, de forma impressionante, ganharam expressões mais nítidas. As poças d'água refletiam as luzes dos letreiros com um brilho intenso.
Então fiquei me perguntando em que momento da minha vida eu comecei a enxergar menos. Em dezembro o estágio já estava bem avançado. E antes de dezembro? Quantos foram os meses, quem sabe os anos, ao longo dos quais percebi com menos intensidade as cores e as formas que se apresentaram diante de meus olhos míopes? Quantos detalhes e nuances perdidos...